Imagine que, em uma determinada hora do dia, seu computador pare e você não possa mais ver e-mails do trabalho ou receber ligações de clientes. Nem mesmo ser lembrado pelo chefe, via WhatsApp, daquele relatório do dia seguinte. Para alguns, esta é a glória para o merecido descanso. Para outros, agonia no ato de se desconectar.

A realidade é que, com trabalhos cada vez mais remotos e digitais, a contagem das horas de trabalho fica confusa. Limitá-las é o caminho. As empresas afirmam que é pelo bem-estar dos funcionários. Pode ser — também. Contudo, há outras duas questões: a econômica, visto que a restrição ajuda a diminuir os custos na folha de pagamento por horas extras, e o resguardo jurídico.

Para quem passa o dia dentro da empresa, por exemplo, isso significa verificar e-mails e ficar à disposição pelo telefone a qualquer horário, como um eterno plantão. Em casos de home-office, há um agravante, pois a reforma trabalhista passou a considerar o controle de jornada remota por tarefas e não por hora trabalhada, não havendo necessidade de pagamento de horas extras.

Tudo isso, lá na frente, pode gerar problemas para os dois lados.

— Para o funcionário que trabalha em home-office é ruim porque, mesmo que ele tenha liberdade para administrar seu tempo, fica a mercê da quantidade de demanda de trabalho, sem ter limitações e ressarcimento — diz o advogado trabalhista da Bonilha Advogados, Renato Santiago.

O OUTRO LADO

Para a empresa também é difícil se proteger de um processo e comprovar que respeitou a jornada. Com nada muito às claras, algumas empresas estão criando mecanismos para controlar a carga horária.

— As novas tecnologias dão celeridade à comunicação entre pessoas, porém a utilização do WhatsApp para finalidades profissionais fora do horário de trabalho pode gerar hora extra — explica Nelson Tomaz Braga, sócio do N.Tomaz Braga & Schuch Advogados Associados.

Para ele, as limitações no acesso fora do expediente foram tomadas no intuito de mitigar reclamações trabalhistas relacionadas a horas extras, intrajornada, interjornada, sobreaviso e dano moral/existencial — e são positivas. Especialmente, porque os processos de horas extras são comuns na Justiça do Trabalho e, em geral, o que mais encarece as condenações trabalhistas.

— Lembro de um caso de uma pequena empresa em que o empresário passava e-mails com orientações e comentários tarde da noite, além do horário do expediente, apenas porque estava com mais tempo para isso. O colaborador, no entanto, sentia-se na obrigação de responder prontamente e começou a acessar o sistema também fora do horário comercial. Felizmente, a questão foi resolvida com uma conversa. Mas poderia ter tido um desdobramento diferente — lembra Tomaz Braga.

Lá fora, o enquadramento da jornada já está mais avançado, mas por outros motivos. No Japão, por exemplo, onde houve um crescimento na quantidade de mortes por excesso de trabalho (karoshi, em japonês) nos últimos anos, o governo criou um plano para restringir as horas extras. E na Coreia do Sul uma iniciativa recente determina que todos os computadores dos funcionários do Governo Metropolitano de Seul serão desligados às 20h na sexta-feira. O país tem uma das maiores jornadas de trabalho do mundo.

BRASIL INICIANTE

No Brasil, delimitar o trabalho ainda é uma prática incipiente, porém, já adotada por algumas empresas. Entre as medidas, estão o bloqueio do acesso a e-mails e telefones corporativos nas férias para todos, incluindo chefes. Para o funcionário comum, também durante a semana à noite e nos finais de semana.

Na Mapfre, em 2014, deu-se início a um projeto de mobilidade que incluía o trabalho remoto e cargas horárias diferenciadas. João Paulo de Noronha, gerente de administração de pessoas do Grupo Segurador Banco do Brasil e Mapfre, explica que, hoje, o horário é controlado por meio de um login, seja dentro ou fora da empresa (em casos de home-office).

— Quando dá oito horas de trabalho, o funcionário perde o acesso à rede corporativa. Em casos de precisar fazer hora extra, é necessária a autorização do gestor e o tempo total não pode ultrapassar nove horas e meia por dia — relata Noronha.

Assim como nas demais empresas, a mudança também veio para otimizar o tempo do colaborador e evitar possíveis processos trabalhistas. Quando não havia esse método e o funcionário continuava a trabalhar em casa, a empresa chegou a ter problemas na fiscalização por causa das horas extras.

— Há um cuidado também de se resguardar, por isso há o controle. E os gestores começaram a perceber que, nem sempre, as horas extras eram porque havia demanda. Às vezes, o tempo gasto no dia era com afazeres pessoais e o trabalho se acumulava — conta de Noronha, explicando que embora o foco seja a qualidade de vida do trabalhador, a medida trouxe uma redução significativa entre 70% e 80% do pagamento de horas extras.

SEM O ‘ZAP’

Outra mudança foi proibir chefes de conversarem via WhatsApp com os funcionários sobre demandas.

— É uma orientação jurídica. Não pode passar ordens ou solicitações pelo aplicativo. Pode até bater papo e alguns participam de grupos, mas nada que caracterize trabalho — afirma o executivo.

Na cena das mudanças trabalhistas, Noronha diz que, em breve, a companhia adotará a flexibilização no horário de entrada.

— Em uma cidade como São Paulo, há muitas variantes, então, a flexibilidade é importante. Os jovens que estão entrando não querem pegar trânsito.

Na empresa de softwares Alterdata, o login para o e-mail corporativo durante as férias sempre foi negado e, há três anos, os funcionários não têm mais acesso a qualquer ferramenta do sistema corporativo entre 20h e 7h, nem nos finais se semana ou nas férias.

— Cortamos também o uso do WhatsApp pessoal e o telefone da empresa não vai para casa — explica a diretora operacional Renata Soares.

A opção por bloquear teve resistência, no início, de alguns que queriam adiantar as tarefas num dia. Porém, com o tempo todos se adaptaram. O sistema funciona para a matriz em Teresópolis e todas as filiais no Brasil, sendo trabalho na empresa ou home-office.

João Felippe dos Santos é instrutor comercial na Alterdata e explica que os sistema o ajuda a organizar melhor a sua rotina.

— Quando não se tem acesso, realmente não há o que fazer e relaxamos. Não ter o momento de lazer, uma hora, cansa muito.

— No caso de realmente ter que fazer hora extra, o funcionário precisa da autorização do gestor. E, para os clientes, temos um atendimento específico de suporte 24 horas — acrescenta Renata.

Já na Arval Brasil, gestora de frotas de veículos e subsidiária do Grupo BNP Paribas, o funcionário tem que estar na empresa para ter acesso à rede. Segundo Deise Minelli, gerente de RH, às 22h15m há uma trava para todos os computadores.

Para os cargos de chefia, além disso, o acesso a e-mails é bloqueado nas férias. A decisão, afirma, foi pensada por causa da qualidade de vida dos funcionários e das regras da legislação trabalhista. Com isso, caem as chances de processos futuros por conta das horas extras. As despesas com essas ações também caíram bastante.

É difícil para o funcionário justificar que trabalhou a mais e que deve receber por isso. Também é complicado para a empresa provar que cumpriu as leis trabalhistas. O quadro ficou ainda mais confuso quando a reforma trabalhista regulamentou o home-office, passando a considerar os resultados como referência.

Os empregados em regime de home-office estão excluídos da limitação de horas trabalhadas. Estão enquadrados no artigo 62 da CLT. O motivo é que a distância não possibilita a vigilância direta do empregador, não estando o empregado sujeito ao controle de horário. Assim, não há pagamento de horas extras — explica Alexandre Almeida, advogado e sócio da Mazars, consultoria empresarial.

Por outro lado, Almeida diz que é possível as partes estipularem uma jornada, que poderá ser feita por meio de ferramentas tecnológicas ou de um contrato contendo deveres e punições para o não cumprimento.

— Isso permitiria a empresa poder controlar o trabalho à distância, inclusive com a marcação da hora de entrada, intervalos e saída, por meio de sistemas de login e logoff — afirma.

Segundo o advogado Renato Santiago, cabe à empresa deter o controle da jornada, mas o funcionário também pode buscar formas de se resguardar. O login, que algumas empresas adotam, por exemplo, pode ser uma boa saída. Ao trabalhador, ele orienta que se tirem fotos e imprimam-se e-mails que mostrem os horários em que se está a serviço.

O advogado Nelson Tomaz Braga lembra que caso a empresa considere necessário o monitoramento da atividade, poderá fazê-lo, mas estará sujeito ao pagamento de horas extras. A orientação dele é que o profissional mantenha o máximo da sua rotina como se estivesse em um escritório.

— Todos os ajustes deverão ser feitos contratualmente, como a disponibilização de equipamentos, infraestrutura, reembolsos de gastos com energia, telefonia, internet, bem como quais tarefas serão executadas. É recomendável que as empresas lancem nos contratos a forma de controle, seja por meio de tarefa ou de jornada. É também importante que a empresa invista em alguma modalidade de corte de acesso a sistemas, caso haja, de modo a evitar 100% o risco de futuras condenações trabalhistas que reclamem horas extras — direciona Braga.

A medida pode ser usada tanto nos contratos de trabalho normais, quanto nos contratos home-office por cautela para evitar alegação de excesso de jornada.

— O direito ao descanso remunerado, com a efetiva desvinculação dos assuntos pertinentes ao trabalho, é uma conquista social significativa e evita eventuais abusos. Esse é o espírito da medida. Hoje, a sociedade é também baseada em tecnologia de informação, com um setor terciário preponderante, onde desponta a economia digital com suas especificidades — analisa Alexandre Almeida. Via Oglobo

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Fonte: jc