Do alto, por imagens de satélite, fica fácil identificar a Terra Indígena Sete de Setembro, localizada na divisa entre Rondônia e Mato Grosso: é a área verde que resiste ao avanço do desmatamento na região. “Paiter”, na língua da família Mondé (um tronco linguístico do grupo Tupi ao qual pertencem diversos povos indígenas da Amazônia, incluindo os Paiter), significa “Gente de verdade”. São pouco mais de 1.200 pessoas distribuídas em cerca de 40 aldeias dentro de um território de quase 250 mil hectares de floresta protegida.

Imagem de satélite: Terra Indígena Sete de Setembro, no município de Cacoal (RO), resiste ao avanço do desmatamento na região

Um povo que teve seu primeiro contato oficial com os não indígenas em 1969, quando uma expedição da Funai chegou ao local num período marcado pelo incentivo do governo federal em “integrar para não entregar”, na visão de que era preciso ocupar a região contra interesses estrangeiros. O slogan “terra sem homens para homens sem terra” apenas não considerou que, na Amazônia, já viviam povos como os Paiter Suruí.

Esse encontro, como tantos outros na história indígena do país, não gerou harmonia na convivência ou mesmo o prometido progresso. Porém, com a retomada do território, demarcado na década de 1970 e oficializada no início dos anos 80, os Paiter fortaleceram a própria tradição, mas, no lugar de apagar os vestígios da ocupação, eles os ressignificaram.

Transformaram os cafezais deixados pelos colonos na base de uma nova economia, adaptaram a lógica de mercado às suas práticas coletivas e fizeram da floresta o eixo de uma autonomia que hoje se fortalece tendo como foco o respeito à natureza e o empreendedorismo indígena.

“Café ficou, homem branco saiu”

Celesty Suruí é a primeira barista indígena do Brasil | Fotos: Jordan Cruz

Quando os Paiter retomaram parte de seu território, o café estava lá. Plantado pelos colonos, os cafezais continuavam no território. Cabia a eles a decisão do que fazer. “Adotamos o café como se fosse nosso. Adotar o café foi difícil. Uma parte das lideranças, dos anciões que viveram nesse período, era contra. Pois era símbolo, uma semente de uma história de genocídio. Já outra parte viu ali algo especial, que poderia manter”, afirma Celesty Suruí.

Naquele primeiro momento, o café ainda não era considerado como cultivo para a produção em si. “A gente achava que era uma fruta que já existia na floresta, chamada sarikab. Os mais velhos comiam o fruto do café achando que era esse outro fruto. O café não é da nossa cultura”, relembra.

Porém, em contato com outras comunidades próximas não-indígenas, foi iniciado o processo de ressignificação, com um novo olhar para as plantações. O café, antes símbolo da presença invasora, passou a ser cultivado com outro sentido: como ferramenta de sustento, de autonomia coletiva e também de reflorestamento.

Agricultores de 35 aldeias trabalham diretamente com o cultivo de café na Terra Indígena Sete de Setembro

Hoje, os cafezais Paiter crescem dentro de sistemas agroflorestais, onde diferentes espécies dividem o mesmo solo, respeitando os ciclos da terra e evitando o desmatamento. O cultivo não se impõe à floresta, ele acontece com ela. Essa relação é central na cultura Paiter, onde a natureza não é recurso, mas origem.

O nome da fruta com a qual os mais velhos confundiram o café, sarikab, como chamavam na língua Paiter, permaneceu vivo na memória e, anos depois, foi transformado em marca. Hoje, escrito na identidade visual da produção, ele aparece como Café Sarikab, batizando o café Paiter Suruí com uma palavra ancestral, ressignificada sem perder sua raiz.

Com notas complexas de chocolate, castanhas e corpo cremoso, o o café indígena foi classificado como “especial” em premiação local

Atualmente, cerca de 176 agricultores Paiter Suruí de 35 aldeias trabalham diretamente com o cultivo de café na Terra Indígena Sete de Setembro. A produção estimada chega a 1.600 sacas por safra. A parceria com a indústria Três Corações, por meio do Projeto Tribos, garante a demanda estável, suporte logístico e renda para o território, com 100% da produção adquirida pela empresa e voltada para microlotes especiais . Em 2022, o café indígena recebeu reconhecimento oficial, classificado como “especial” em premiação local, graças às notas complexas de chocolate, castanhas e corpo cremoso.

Como afirma Celesty Suruí, barista e liderança jovem do povo Paiter: “Eu sou a segunda geração de cafeicultores da minha família, e eu acredito que através do café temos o poder de mudar o futuro, é uma ferramenta de levar a cultura, a tradição e os outros projetos que acontecem dentro do território”.

Turismo de experiência com respeito à ancestralidade e natureza

“No turismo estão educação, saúde, desenvolvimento, geopolítica, cultura, tecnologia e meio ambiente”, afirma Almir Suruí, liderança do território

O Complexo Yabnaby é uma iniciativa de turismo de base comunitária desenvolvida pelo povo Paiter Suruí dentro da Terra Indígena Sete de Setembro. Criado com o objetivo de gerar renda para as famílias e fortalecer a cultura tradicional, o projeto faz parte do Plano de Gestão Territorial e Ambiental do território e vem se consolidando como uma experiência de turismo responsável, aliando preservação ambiental e valorização cultural.

“O turismo surgiu da nossa própria necessidade de gerar renda para as famílias do povo Paiter Suruí”, explica Almir Suruí, liderança do território e idealizador do projeto. Segundo ele, o Yabnaby foi pensado como parte de uma estratégia maior de desenvolvimento territorial, que não apenas movimenta a economia local, mas ajuda a preservar a cultura e estruturar, de forma sustentável, outras iniciativas dentro da terra indígena, com valorização da identidade do povo.

O visitante que chega ao complexo não tem apenas uma vivência cultural: conhece de perto os sistemas agroflorestais do povo Paiter, como a produção de café, cacau, castanha e banana. É uma experiência que desperta, através do cotidiano compartilhado, uma consciência ambiental mais profunda. O turismo, nesse contexto, funciona como uma porta de entrada para o território e também para uma nova forma de pensar a relação entre floresta, humanidade, economia e futuro.

O Complexo Yabnaby, na Terra Indígena Sete de Setembro, é exemplo de turismo de base comunitária

Para garantir que a experiência no Yabnaby fosse pensada com responsabilidade e qualidade, o povo Paiter buscou capacitação. Com apoio do Sebrae e outras instituições parceiras, foram realizados treinamentos voltados à hospitalidade, à recepção de visitantes, à alimentação e à condução das trilhas.

Para Almir Suruí, liderança do povo Paiter e idealizador do Complexo Yabnaby, o turismo vai muito além da visitação: “A gente vê o projeto do turismo como um grande guarda-chuva de todos os projetos que a gente está desenvolvendo aqui dentro do território. Dentro do turismo, a gente cria o contato direto com outra sociedade”.

“No turismo, nossos visitantes vão ter esse contato direto com a floresta, a gente abre um espaço para dialogar o que cada um pensa sobre o futuro, sobre o que é desenvolvimento”

Almir Suruí, liderança do povo Paiter

“Então, no turismo estão educação, saúde, desenvolvimento, geopolítica, cultura, tecnologia e meio ambiente. No final, isso gera o fortalecimento de geração de renda para a nossa comunidade”, complementa.

Hoje, uma equipe formada por membros da comunidade Paiter, entre guias, responsáveis pela cozinha, hospedagem e recepção, cuida diariamente da operação do Yabnaby. Em 2024, o Yabnaby recebeu em média 20 visitantes por mês, somando cerca de 240 turistas ao longo do ano. Embora esse número ainda esteja em fase de consolidação, ele reflete um início promissor, alinhado ao investimento de R$ 522 mil recebido por meio do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio), para elaboração de um plano estratégico de negócios. Os indígenas que atuam no turismo passaram por capacitação no Sebrae de Cacoal. A instituição prestou apoio na roteirização de experiências, hospitalidade, atendimento, entre outras áreas envolvidas na atividade de receber o turista.

Juventude indígena cria produtora para contar a própria história

“Nosso sonho é que cada aldeia tenha um comunicador, para que a gente tenha uma rede de comunicação interna e saiba o que está acontecendo em todo o território”, afirma Ubiratan Suruí

Durante muito tempo, os anciãos do povo Paiter Suruí, assim como outros povos originários, não gostavam de ser fotografados. Entre outras razões, existe a versão, confirmada pelas atuais gerações, que, ao capturar a imagem de alguém, também tirava sua alma. Essa desconfiança pode ser interpretada não do ponto de vista literal, mas metaforicamente, inclusive pelos mais jovens. Afinal, os Paiter e outros povos passaram muitos anos sendo registrados por olhares de fora, com o direito de contar a própria história negado.

Repórteres, documentaristas, visitantes: muitos lá estiveram, tiraram fotos, levaram depoimentos e gravações. E construíram narrativas. Poucos voltaram ou garantiram a própria narrativa dos Paiter como protagonistas. Ou, ao menos, entregaram ao povo os registros feitos em seu território.

Foi como resposta a esse ciclo de apropriação que surgiu o coletivo audiovisual Lakapoy, uma produtora criada por jovens indígenas com a missão de registrar o próprio território onde vivem, sob o próprio olhar. O Lakapoy filma para si, para preservar o que é sagrado, para ensinar às gerações futuras e para garantir que as histórias do povo Paiter Suruí sejam contadas com respeito e contexto.

O coletivo participa de produções em parceria com jornalistas e documentaristas e e realiza projetos próprios, como exposições

“O coletivo nasceu a partir de uma necessidade de registrar o nosso povo, com o nosso olhar, porque muita coisa foi se perdendo desde o contato com os brancos”, explica Ubiratan Suruí, um dos fundadores do Lakapoy.

Com a missão de produzir para o próprio povo, grande parte dos materiais é feita em tupi-mondé, a língua dos Paiter. O Lakapoy atua como instrumento de memória e como rede de educação visual, reforçando para os mais novos o valor de sua identidade, história e território.

Mas há também um movimento para fora. O coletivo participa de produções em parceria com jornalistas e documentaristas, como no filme “Minha Terra Estrangeira”, e realiza projetos próprios como a exposição “Gente de Verdade”, que reuniu fotografias autorais e relatos coletados nas aldeias, feitas pelos próprios Suruís.

Ubiratan Suruí diz que a meta é estender o coletivo para as 36 aldeias dentro do território, criando uma rede de produção audiovisual

O trabalho do Lakapoy também tem impacto econômico. Além de registrar e divulgar produções artesanais e extrativistas, o grupo atende organizações parceiras como WWF e ISA, produzindo imagens da floresta, do café, da castanha, fortalecendo o ecossistema de comunicação da TI Sete de Setembro.

“Nosso sonho é que cada aldeia tenha um comunicador, para que a gente tenha uma rede de comunicação interna e saiba o que está acontecendo em todo o território. Não só as coisas boas, mas também ameaças como o desmatamento e a entrada de invasores”, diz Ubiratan.

O coletivo audiovisual Lakapoy tem atualmente cinco integrantes fixos entre editores, fotógrafos e cinegrafistas. A meta é estender o coletivo para as 36 aldeias dentro do território, criando uma rede de produção audiovisual que fortaleça a comunicação interna e garanta autonomia na preservação cultural e do seu território e também denuncie possíveis ameaças ao povo Paiter Suruí.

Iniciativas têm os próximos passos planejados

O Complexo Yabnaby recebeu cerca de 240 turistas ao longo de 2024 e tem plano de expansão

Quebrando preconceitos, o povo Paiter Suruí não só planeja, como já está em fase de expansão de ações que usam o empreendedorismo como reforço da autonomia e da identidade ancestral. Assim como o café foi reinterpretado, o turismo desenhado para atender uma lógica de vivência dentro da comunidade, e o audiovisual como ferramenta de protagonismo, novas fases e negócios de empreendedorismo indígena já estão em curso.

Almir Suruí ressalta que o empreendedorismo é mais do que uma alternativa econômica.

“O empreendedorismo é importantíssimo para nós, principalmente para fortalecer a economia do nosso povo, mostrar que somos capazes, que nós somos donos dos nossos caminhos, do nosso futuro”

Almir Suruí

“Para ajudar o mundo a gente precisa estar forte, não basta a gente só querer. O recurso financeiro é um meio, se a gente não tiver esse meio, a gente não tem como apoiar e não só apoiar, mas contribuir na construção da política, das ações, da estratégia, da participação que possa unificar a luta da humanidade contra aqueles desafios que estão a frente”, completa.

No campo da agricultura, os próximos passos miram no cacau, que começa a ganhar espaço nas agroflorestas, com o objetivo de, em breve, estruturar uma fábrica de chocolate dentro do próprio território. O turismo, por sua vez, também se prepara para crescer. Com dois bangalôs em funcionamento, o Complexo Yabnaby quer expandir sua capacidade de hospedagem.

Na produção de conteúdo o coletivo audiovisual Lakapoy tem atuado em exposições, documentários e coproduções que colocam o povo Paiter no centro das debates e exposições onde suas narrativas são protagonistas. Já no campo ambiental, a proposta de um novo projeto de carbono, que seja 100% gerido pelos próprios Suruí, reflete a experiência acumulada e o desejo de independência. Uma outra experiência de projeto de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal foi feito no local e, apesar de ter reduzido o desmatamento nos primeiros anos, foi suspenso em 2018 devido aos problemas com as invasões e a mineração.

E o café, produto que já conquistou reconhecimento e prêmios, segue como vitrine de uma agricultura sustentável, com identidade cultural forte, qualidade comprovada e mercado em expansão. “Muitas pessoas da sociedade não indígena acham que o nosso território não produz, nós produzimos e muito. É isso que a gente quer mostrar para o mundo, que é possível produzir com responsabilidade e consciência”, afirma Almir Suruí.

Conteúdo produzido em parceria com o Sebrae. Com revisão e edição de Luciene Kaxinawá e Daniel Nardin.

Fonte: SEBRAE
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