Em Manaus, capital do Amazonas, o “x-caboquinho” é uma tradição. Preparado com pão francês, banana frita, manteiga e lascas do fruto do tucumã, é uma das opções obrigatórias em boa parte das lanchonetes e nas feiras da cidade. Nesses locais, o açaí também é um item indispensável, pelo consumo diário da polpa do fruto. Assim como o “guaraná da Amazônia”, batido com ingredientes como amendoim e abacate, facilmente encontrado nas praças manauaras.

O que é parte do cenário da rica culinária amazônica serve de base para empresas que misturam tecnologia e inovação com os ingredientes tradicionais para conquistar novos consumidores, especialmente quem tem buscado mudar o hábito alimentar. Segundo dados de um relatório da Bloomberg Intelligence, o mercado global de alimentos à base de plantas deve atingir US$ 162 bilhões até 2030, frente aos US$ 29,4 bilhões registrados em 2020 — um crescimento de quase cinco vezes em dez anos.

O tucumã e o açaí são os itens principais da linha de produtos nas versões liofilizadas da Amazônia Smart Food | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

As empresas Amazônia Smart Food e Dr. Guaraná, sediadas em Manaus, são exemplos dessa tendência, que aproveita a diversidade amazônica, o conhecimento tradicional e a tecnologia, mantendo diálogo e forte relação com os fornecedores, que estão na base desse mercado. Na receita, é preciso ter, ainda, generosas doses de empreendedorismo, para fazer dos negócios inovadores um sucesso entre consumidores.

Vai uma linguiça de açaí aí?

O açaí já é conhecido em todo o mundo. Na Amazônia, é consumido tradicionalmente com farinha e acompanha peixe frito, por exemplo. Fora dela – o que é quase uma heresia para quem consome da maneira original -, é servido como quase um sorvete, com acompanhamentos como granola, leite condensado e outras frutas. Porém, a Amazônia Smart Food decidiu inovar e tem no fruto um dos seus principais produtos veganos e naturais: a linguiça de açaí, que também leva gordura de palma na sua composição.

Com uma procura consolidada por conta da famosa “marca” açaí, a aposta do chef Beto Pinto, fundador e diretor de operações da empresa, é por um outro item ainda pouco difundido aos brasileiros e mundo afora. “Hoje nossas principais cadeias produtivas são a do açaí e do tucumã. Mas a gente entende que a fruta símbolo do Amazonas é o tucumã. Ele é muito conhecido aqui, mas para o restante do país é quase desconhecido. Nossa visão é que daqui a vinte anos, o tucumã seja tão conhecido como o açaí”, acredita Beto.

Com isso, outro carro-chefe entre os produtos da empresa é o hambúrguer de tucumã, que confere um outro sabor e experiência ao lanche no formato tradicional. Em Manaus, inclusive, o fruto é a base do conhecido sanduíche “x-caboquinho”, que leva lascas de tucumã, além de banana frita, manteiga e queijo coalho.

O açaí e o tucumã também são os itens principais da linha de produtos nas versões liofilizadas, um processo de desidratação, permitindo que o consumidor explore a criatividade e faça receitas como cremes, patês, base de massas ou mesmo drinks.

O Sebraetec ajudou a Amazônia Smart Food a inovar e a participar de feiras, ampliando o acesso a mercados | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Para desenvolver os produtos, a empresa contou com o apoio do Sebrae, através da iniciativa Sebraetec. “Hoje é muito caro você fazer inovação e usar tecnologia de ponta com recursos próprios, o Sebraetec apoia a gente com uma redução expressiva do valor e também com a participação nas feiras nacionais mais relevantes, o que ajuda a ampliar o mercado e divulgar nosso negócio”, avalia Beto Pinto.

Inovação com foco na valorização de comunidades

Para Beto Pinto, a empresa tem um posicionamento claro: valorizar os frutos amazônicos em seus produtos, mas também aqueles que fornecem a base da produção. Para isso, a Amazônia Smart Food adotou algumas estratégias para uma melhor remuneração dos produtores que fornecem o açaí e o tucumã para a empresa. A empresa oferece qualificação em boas práticas, principalmente em manipulação e compra os frutos já pré-beneficiados, com a polpa e não in natura.

A gente tem todo um trabalho de curadoria com os comunitários, sendo que a contrapartida deles é fornecer para nós a matéria-prima já pré-beneficiada e nós pagamos o valor de mercado. É um trabalho coletivo que, além de fortalecer a questão financeira dos produtores, também fortalece a questão da cooperação entre as partes.

Beto Pinto, CEO da Amazônia Smart Food

De acordo com o empresário, a bioeconomia só faz sentido quando inclui o social em conjunto com a biodiversidade e a economia. “A gente tratava muito sobre bioeconomia: se falava muito de ativos, de floresta e se falava muito pouco das pessoas que fazem isso acontecer. Então, hoje a gente tem o entendimento de usar a palavra sociobioeconomia, porque sem pessoas a gente não faz bioeconomia. E o ponto focal das ações devem ser os indivíduos, deve ser a pessoa que está lá na floresta, que é a verdadeira guardiã de toda essa sabedoria e do território”, explica Beto Pinto, diretor de Operações e um dos fundadores da Amazônia Smart Food.

Reunindo empresas que trabalham com esse conceito que envolve e considera as pessoas em todos os processos, a Associação de Sociobioeconomia da Amazônia (Assobio) reforça esse entendimento que é cada vez mais presente nos empreendimentos da região, sobretudo as pequenas e médias empresas. Para Paulo Reis, presidente da Assobio, a sociobioeconomia é uma forma de prosperar sem destruir, valorizando saberes tradicionais, biodiversidade e impacto positivo nas comunidades.

Em tempos de emergência climática e profundas desigualdades, falar sobre bioeconomia é abrir espaço para soluções viáveis, que conciliam justiça social, conservação ambiental e geração de renda.

Paulo Reis, presidente da Assobio

Para Beto Pinto, a preocupação também está presente no amanhã, para as futuras entregas. “Hoje, nós temos frentes em reflorestamento usando mudas de tucumã, temos a questão da rastreabilidade dos produtos que é feita por uma empresa parceira, então a gente procura trabalhar com os nossos fornecedores da maneira mais competitiva, sustentável e, é claro, digna para esses produtores”, explica.

O empresário destaca ainda a importância do cuidado com áreas já degradadas e sua recuperação, gerando benefícios ao solo, aos agricultores e aos resultados das colheitas. “Ele (agricultor) vai pegar áreas degradadas, fazer novos plantios, fazer quintais, áreas florestais, vai prospectar dentro do território dele as mais plantas frutíferas. Nós temos produtores que descobriram dentro do próprio terreno quatro a cinco vezes mais árvores de tucumã do que ele achava que tinha, só pelo simples fato de entrar na floresta e prospectar os ativos que estão ali sem derrubar nada, sem fazer novos plantios, inclusive porque ele tinha uma área já bem preservada”, exemplifica.

Dr. Guaraná: novo encontro entre o inovador e o tradicional

Outro exemplo de tendência de mercado de inovação é a Dr. Guaraná, empresa de energéticos baseada em insumos amazônicos. A companhia aposta em produtos como “energy shots” – pequenos frascos de ingredientes líquidos concentrados e versões em cápsulas e em pó concentrado e puro de guaraná, açaí, camu camu e maca peruana, além de gominhas de cupuaçu e gengibre.

A empresa Dr. Guaraná vende energéticos produzidos a partir de insumos amazônicos | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Para Marcio Reis, idealizador e proprietário da Dr. Guaraná, a valorização da produção das comunidades que fornecem os ingredientes essenciais é parte fundamental do modo de operação da empresa. “Eu não vendo produto de base, não vendo matéria-prima. Eu vendo produto manufaturado. Ou seja, eu agrego valor, aumento os valores justamente para poder valorizar a compra junto às comunidades. Então o Dr. Guaraná não tem razão de viver se não for para fomentar a bioeconomia na floresta, não tem como”, pontua.

Ele afirma que alguns dos fornecedores parceiros do Dr. Guaraná atuam com o sistema agroflorestal (SAF), cultivando diversas espécies, próximas umas das outras, de modo que haja benefícios como redução da degradação e recuperação do solo, maior variedade de espécies nativas cultivadas, entre outros.

“Não tem como nós existirmos, não tem como nós levarmos a solução para as dores do mercado sem a nossa base principal que são as nossas comunidades, que são a agricultura familiar, as cooperativas que estão diretamente ligadas ao campo. O esforço é realmente criar uma linha de produtos para que o dinheiro fique aqui e valorize o nosso povo aqui”, afirma.

Produção de “energy shots”, com ingredientes líquidos concentrados e versões em cápsulas e em pó | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Para o crescimento da empresa, Reis destaca o apoio de parceiros, como o Sebrae, para o desenvolvimento técnico e científico da marca, bem como para o contato com as comunidades. “Com o Sebrae tivemos o mapeamento do nosso interior com cooperativas e grupos familiares que estavam dedicados ao cumprimento de normativas de meio ambiente, que estavam comprometidos com o melhoramento da matéria-prima, com metodologias de trabalho que garantissem a rastreabilidade do produto. E foi graças a esse trabalho, que o Sebrae já faz no nosso interior, que fez com que eu me conectasse com essa rede de oportunidades”, destaca.

O empresário reforça que a maior atenção que vem sendo dada para a região deve considerar um olhar mais estratégico. Segundo ele, a região ainda enfrenta dificuldade de infraestrutura, problemas logísticos e é impactada com eventos climáticos extremos, como as secas históricas de 2023 e 2024, que reduziram em até 25% a produção de guaraná. “Dava vontade de chorar”, lembra Reis.

“O Dr. Guaraná não tem razão de viver se não for para fomentar a bioeconomia na floresta”, afirma Márcio Reis | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Para ele, a região tem potencial para se desenvolver com união entre tecnologia, inovação e respeito às pessoas e florestas. “Temos toda essa biodiversidade, que nos posiciona com a capacidade de se tornar o maior pólo farmacêutico do mundo aqui na floresta amazônica, o maior pólo cosmético. O que precisa é de investimento e de estratégia mesmo, valorizando as pessoas daqui”, afirma.

É nesse sentido que ele defende maior conhecimento e trabalho em conjunto com as comunidades. “O tempo da floresta é diferente do tempo das pessoas urbanas. Para a minha empresa crescer, eu tenho que trabalhar na outra ponta da cadeia para que o meu produtor produza mais e melhor. É aí que entra todo um trabalho de conscientização, de pesquisa e desenvolvimento para que o aumento de renda, principalmente do produtor rural, não fique atrelado a desmatamento e plantio descontrolado”, ensina.

Agricultura familiar na base da cadeia produtiva

As duas empresas atuam diretamente com a agricultura familiar orgânica. A Dr. Guaraná compra insumos de associações localizadas nos municípios de Presidente Figueiredo, Maués, Rio Preto da Eva e Manacapuru. Já a Amazônia Smart Food mantém parcerias com 32 comunidades, principalmente no Amazonas, mas também no Pará, Roraima e Rondônia, beneficiando diretamente mais de 40 famílias e, indiretamente, mais de mil pessoas.

Nazide Bentes, presidente do Grupo Esperança Orgânica (GEO), que envolve 75 famílias produtoras | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Entre as associações beneficiadas está o Grupo Esperança Orgânica (GEO), uma associação intercomunitária localizada na BR-174, km 126, na comunidade Jardim Floresta do município de Presidente Figueiredo.

A assistente social Nazide Bentes é uma das protagonistas deste modelo sustentável. Com origem na etnia indígena Mura, Nazide preside a GEO e explica que o modelo de produção da comunidade é agroecológico e orgânico, com o consórcio de diversas culturas de curto, médio e longo prazo, envolvendo 75 famílias produtoras no sistema.

Açaí e  hortaliças estão entre as culturas trabalhadas de forma comunitária no Grupo Esperança Orgânica (GEO) | Foto: Aline Fidelix/Amazônia Vox

Juntas, elas produzem guaraná, cupuaçu, açaí, mandioca, mangarataia, urucum, café, castanha, tucumã, bacaba, buriti, hortaliças (pimenta de cheiro, cebolinha, pepino), entre outros. “A GEO está aí para mostrar que a biodiversidade amazônica é muito rica e tem para todo mundo, e todo mundo cresce, todo mundo ganha quando a gente produz, então essa é uma das maiores importâncias da nossa associação: é estar mobilizando, incentivando, mostrando, e oportunizando espaços de venda, espaços para qualificação. A gente faz cursos, a gente faz experimentos, a gente faz produtos”, afirma Nazide Bentes.

Nazide Bentes conta que as diversas culturas presentes na comunidade permitem que haja, ao longo de todo o ano, a colheita das múltiplas plantações. Além disso, o modelo de produção proporciona produções grandes o suficiente para a venda e lucro, e também para o consumo das famílias envolvidas na produção. “É a garantia alimentar e nutricional da casa. Porque um trabalhador com fome também não produz e nem pensa. E se a gente vende tudo que a gente tem, como que a gente vai sobreviver? Então a gente não pensa em só plantar para a gente vender.”

Com conhecimentos e uma trajetória herdados da mãe, hoje com 82 anos de idade, Nazide Bentes perpetua os saberes tradicionais, unidos ao desenvolvimento e à qualificação, utilizados nas propriedades de cada família que compõe a GEO.

“Sabemos que a agricultura familiar e o sistema agroecológico e orgânico são de fundamental importância para o meio ambiente, para a sociedade, e até mesmo para o trabalhador que trabalha no dia a dia com isso”

Nazide Bentes, presidente do Grupo Esperança Orgânica (GEO)

“A Amazônia é minha casa, eu não sei onde começa a sala, nem o quarto, nem a cozinha, eu só sei que é uma oca que eu não vivo sem ela. Estar dentro da Amazônia é estar no paraíso na terra”, finaliza a liderança.

Fortalecimento dos pequenos está na base de novo modelo econômico para a região

A Amazônia possui um histórico de ciclos de exploração de produtos de base, iniciando pela madeira e seguindo com o avanço das pastagens e, mais recentemente, da soja. Conforme explica o engenheiro ambiental e mestre em ecologia, Yago Santos, as monoculturas demandam muitos recursos, têm alta dependência de agrotóxicos e fertilizantes, alto consumo de água, promovem mudanças drásticas no solo, além de muitas vezes estarem relacionadas a mazelas sociais na região. “Monoculturas também estão intimamente ligadas ao crime de grilagem na Amazônia e expulsão de populações tradicionais e indígenas de seus territórios”, argumenta.

Na contramão das monoculturas, estão os sistemas agroflorestais (SAFs), um modelo alternativo que une lucro, preservação e sustentabilidade na produção de diversas culturas. Os pequenos produtores que trabalham com agrofloresta e agricultura familiar desenvolvem produções que geram benefícios não só sustentáveis, mas também para as próprias comunidades, além de preservarem conhecimentos tradicionais da região.

*Conteúdo produzido em parceria com o portal Amazônia Vox. Revisão e edição de Luciene Kaxinawá e Daniel Nardin. 

Fonte: SEBRAE
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