Sabe-se que o mito nacional de que o povo brasileiro é pacifico acolhedor e sem preconceitos não passa de uma daquelas velhas mentiras tão repetidas que acabam sendo cobertas por um véu de falsa verdade.
De igual modo, a epopeia de que o estado de São Paulo, por ser o mais desenvolvido economicamente do Brasil, se encontra em uma posição culturalmente aberta e sem discriminação, nada mais é do que um idealismo utópico de nossa sociedade.
No presente artigo, debater-se-á uma das mazelas que vem crescendo de forma exponencial, gritante e ao mesmo tempo sumariamente ignorada por todos, a violência generalizada contra pessoas transexuais.
Tem-se que no ano de 2016 a ONG Transgender Europe publicou relatório[1] que coloca o Brasil em primeiro lugar mundial, como nação com mais homicídios de pessoas trans, o país registra, em números absolutos, mais que o triplo de assassinatos do segundo colocado, o México.
Segundo dossiê[2] apresentado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA no ano de 2018, 163 pessoas trans foram mortas no país, o Estado de São Paulo ocupa a 3ª posição do nefasto ranking, somando 14 mortes no período.
Diante de tenebroso cenário, o que se espera do Estado? Até o momento é sentida apenas a omissão da maioria daqueles que detém o poder de mudar a situação, entretanto, conforme será demonstrado, um movimento que milita em favor da segregação social e exclusão das pessoas trans do normal convívio vem crescendo.
O Projeto de Lei – PL nº 346/2019 apresentado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – ALESP pelo Deputado Estadual Altair Moraes (Republicanos), em que pese seja breve na redação, é imensurável em sua carga de preconceito, veja-se:
Estabelece o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo
Artigo 1º – O sexo biológico será o único critério definidor do gênero dos competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo, restando vedada a atuação de transexuais em equipes que correspondam ao sexo oposto ao de nascimento.
Artigo 2º – A federação, entidade ou clube de desporto que descumprir esta lei será multada em até 50 (cinquenta) salários mínimos.
Artigo 3º – Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias após sua publicação.
É preciso destacar que a justificativa do Dep. para a propositura do PL nº 346/2019, com trechos abaixo colacionados, não ultrapassa uma lauda, por óbvio, é impossível ter argumentos aptos a justificar o injustificável (sem destaques no original):
Apesar de todos os procedimentos descritos, é fato comprovado pela medicina que, do ponto de vista fisiológico, ou seja, a formação orgânica não muda, afinal, “homens que foram formados com testosterona durante anos, já as mulheres não têm esse direito em momento algum da vida.” (Ana Paula Henkel, ex jogadora de vôlei em entrevista ao portal UOL)
[…] Para Turíbio, porém, a atleta carrega parte da herança de anos de crescimento com níveis masculinos de testosterona. Uma coisa é o background físico que ela tem antes do processo (de tratamento hormonal). Certamente ela se beneficiou da testosterona até o momento da cirurgia e do tratamento hormonal. Ela adquiria um físico. Claro que, quando ela faz o tratamento ela perde parte dos benefícios que ganhou, mas não é tudo. Então, ao comparar com uma atleta que nasceu mulher, ela tem vantagem sim, não tem como negar.”
Vislumbra-se, tanto no PL apresentado, bem como em sua justificativa, tem-se uma redação e argumentação rasas, ausente de qualquer técnica séria de análise jurídica ou tese médica, sendo a proposta fundamentada em notícias veiculadas online, ausentes de qualquer estudo técnico.
Antes de adentrar em questões íntimas aos profissionais do direito, como a flagrante inconstitucionalidade da proposta, é preciso elucidar determinados pontos de caráter médico, o que se faz apenas e tão somente por observação dos atos expedidos por autoridades no tema.
A participação de atletas transexuais em competições desportivas é regulamentada pelo Comitê Olímpico Internacional – COI, que por meio de um relatório de diretrizes[3], determinou parâmetros médicos para habilitar tais atletas para a prática desportiva.
A Comissão Médica da Federação Internacional de Vôlei – FIVB afirmou[4] que irá trabalhar em conjunto com COI para estabelecer um sistema para a participação de atletas em competições na praia ou indoor que respeite a escolha individual de cada pessoa, ao mesmo tempo em que assegure condições justas em quadra.
Destaca-se que a Confederação Brasileira de Vôlei – CBV atua nos moldes do determinado pelo COI, permitindo o ingresso de atletas trans, desde que cumpridas às exigências médicas.
No Estado de São Paulo, a Federação Paulista de Volleyball – FPV segue as diretrizes da FIVB e do COI[5], permitindo aos atletas transexuais que participem das competições oficiais desta modalidade desportiva.
As diretrizes médicas impostas pelo COI são: a identificação do atleta como pertencente ao gênero feminino e realização de tratamento hormonal para reduzir a testosterona (hormônio masculino) a menos de 10 nano mol por litro de sangue durante os últimos 12 meses às competições e nos torneios propriamente ditos.
Tem-se que tal valor não fora arbitrado ao bel prazer dos dirigentes do COI, inúmeros estudos foram realizados pelo Comitê até que se chegasse a um número preciso que garante a paridade de armas dentro da quadra.
Com o tratamento hormonal sendo executado dentro dos parâmetros fixados, o único resquício da vida anterior ao processo de se tornar trans é a técnica de jogo aprendida, o que todos os atletas profissionais têm.
Avançando no presente estudo, é preciso destacar determinados pontos que afetam diretamente a face jurídica da questão aqui debatida.
Em um aspecto mais objetivo, é possível vislumbrar flagrantes inconstitucionalidades no Projeto de Lei apresentado, conforme serão demonstradas.
A síntese do PL 346/2019 é a vedação de atletas transexuais na pratica de desportos no Estado de São Paulo, em times cujo naipe seja diferente do sexo de nascimento do jogador.
As inconstitucionalidades vislumbradas no PL 346/2019 são de natureza material, por violarem profundamente em primeiro lugar, fundamentos da República Federativa do Brasil[6], como a Dignidade Humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Veja-se, a Dignidade Humana é estrangulada quando se busca, através de ato normativo, impedir o exercício da autodeterminação, pois, acaso entenda-se mulher, a atleta trans tem a imposição de se submeter a um processo de “retorno” a condição que não entende como sua para que possa praticar algum esporte.
Nas palavras do Min. Alexandre de Moraes[7]:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar.
Fato esse que viola também os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pois, o ofício de atleta, à exceção do futebol, é sabidamente penoso no Brasil e, ao impedir o acesso de uma pessoa a profissão que entende como sua, o Estado dificulta novamente a socialização desta minoria.
Neste passo, os Direitos Fundamentais também se encontram violados pelas poucas linhas redigidas no PL 346/2019, dentre os quais se destacam o Direito à Igualdade[8], mormente se considerando a distinção aplicada entre atletas que se identificam com o sexo biológico e os que não se identificam.
Há também uma discriminação flagrante com os transexuais, que se encontram numa situação onde, não podem jogar no time cujo sexo é aquele que se identifica, e, tão pouco será aceito como jogador em uma equipe cujo naipe seja diverso da sua sexualidade.
Cinge-se também, violenta afronta ao esculpido no art. 5º, VIII da Constituição Federal, que prevê “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, […]” ora, no caso aqui discutido há a privação do direito CONSTITUCIONAL do livre exercício da profissão[9], tendo em vista que a norma discriminadora que se pretende inserir no ordenamento jurídico paulista cria impeditivos ao labor desportivo.
Salta aos olhos o movimento segregacionista que busca positivar no PL 346/2019, flagrante atitude preconceituosa, Hart[10] já nos alertou da presente situação:
Enquanto os seres humanos puderem obter cooperação suficiente de alguns para lhes permitir dominar outros homens, usarão as formas do direito como um de seus instrumentos. Homens maus criarão normas perversas, que outros farão cumprir.
Reveste-se o caso de aparente tentativa de legitimar o discurso de ódio, por meio da Lei que se pretende promulgar. Sarmento[11] ao definir o fenômeno do hate speach o conceitua como:
Manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores.
Veja-se, o Projeto de Lei apresentado é instrumento hábil a marginalizar ainda mais a minoria dos transexuais, que vem buscando e conquistando de forma paulatina seus diretos perante a sociedade, como por exemplo a conquista no Supremo Tribunal Federal de criminalizar a homofobia.
Por fim, é forçoso relembrar o princípio da vedação ao retrocesso, implícito em nossa Constituição, que alude à ideia de que o Estado, após ter implementado um direito fundamental, não pode retroceder, ou seja, não pode praticar algum ato que vulnere um direito que estava passível de fruição[12].
Ou seja, após o advento da Constituição de 1.988, somado à todas as conquistas recentes da comunidade LGBTI, a eventual promulgação da Lei oriunda do PL 346/2019 ferirá, de morte, o princípio em epígrafe.
Em suma, o PL 346/2019 repousa em incontáveis inconstitucionalidades, é fundamentado com base em alegações imprecisas e ausente de informações técnicas sobre o tema, além da elevada carga discriminatória que carrega em suas poucas 06 linhas.
A condição de iguais dos atletas trans já foi devidamente explanada e regulamentada pelo órgão que detém competência técnica para tanto, o Comitê Olímpico Internacional, sendo observados os requisitos pela Federação Internacional de Volleyball, pela Confederação Brasileira de Vôlei e pela Federação Paulista de Volleyball.
O Poder Legislativo Bandeirante não se pode prestar o papel de chancelar a presente tentativa de violação dos Fundamentos da República e dos Direitos Fundamentais garantidos desde 1.988.
Conclui-se o presente trabalho com a esperança de que os controles internos da Casa de Leis impeçam a prosperidade do PL 346/2019, bem como que o controle externo, o povo, pressione seus representantes para que deem manutenção ao Estado Democrático de Direito em que, ainda, nos encontramos.
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Fonte: Jornal Contábil
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