No dia 12 de dezembro a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal decidiu considerar crime o não pagamento de ICMS próprio, ainda que declarado pelo contribuinte (apenas com o voto contrário do ministro Gilmar Mendes). Ao embutir o valor do ICMS na mercadoria, o comerciante estaria cobrando tal valor do consumidor e, portanto, se apropriando deles ao não o repassar ao Fisco. Um pedido de vista do ministro Dias Toffoli suspendeu o julgamento.
Tal raciocínio acaba por confundir institutos. Há tributos que são cobrados ou descontados dos contribuintes por terceiros para facilitar a arrecadação. É o caso dos tributos descontados pela fonte pagadora ou do ICMS em substituição tributária. Neles, o consumidor ou o empregado são os contribuintes, e o comerciante ou o empregador apenas descontam os valores e os transferem ao Fisco. Tais recursos não integram o patrimônio daquele que os cobra ou desconta. Nesses casos, o não repasse dos recursos caracteriza a apropriação de algo alheio.
Não é o caso do ICMS próprio. Nesse caso, o consumidor não é o contribuinte. Ele não tem relação jurídica com o Fisco, não é devedor do tributo, não tem capacidade contributiva. Ele apenas arca com o ônus econômico do tributo que — às vezes — está embutido no preço da mercadoria. Da mesma forma que paga nesse momento parte dos encargos trabalhistas e das despesas com aluguel do comerciante. Isso não cria para o consumidor uma relação empregatícia ou de inquilinato com empregados ou com o dono do estabelecimento comercial, da mesma forma que não o torna contribuinte dos tributos com os quais arca ao comprar a mercadoria.
Mantida a posição do STF, o não pagamento de outros tributos também será delito. O Imposto de Renda, o ISS e inúmeros outros impostos têm repercussão econômica no preço do produto. Pela lógica até agora prevalente, a inadimplência de qualquer deles será apropriação indébita.
Tal orientação não leva em consideração que no ICMS próprio e nos demais tributos citados o comerciante é o contribuinte direto, original. Ele não cobra o imposto do consumidor, mas apenas o preço da mercadoria. E o valor pago ingressa no seu patrimônio, não existe uma parcela estranha, independente, destinada exclusivamente ao Fisco.
O fato do STF ter decidido há algum tempo que o ICMS não integra a base de cálculo do PIS e do Cofins não altera sua natureza. A corte apenas entendeu que o tributo não faz parte da receita do comerciante, de modo a afastar a incidência de tributo sobre tributo, mas esteve longe de decidir que o ICMS é coisa alheia passível de apropriação.
Em outras palavras, o comerciante que não paga ICMS própria não se apropria de nada. É devedor do Fisco e merece a execução fiscal, mas não comete crime. A Constituição veda a prisão por dívida — exceto no caso de alimentos — de forma que o STF acaba por desprestigiar o próprio texto maior ao criminalizar a inadimplência fiscal.
O não pagamento de impostos é reprovável e merece atenção do Estado por suas consequências sociais e econômicas. No entanto, é preciso diferenciar a conduta daquele que reconhece e declara a dívida — caso em discussão — daquele que sonega com fraude ou omissão de informações. São situações distintas, de gravidade distinta, e devem ser tratadas de forma diferente. Na primeira e cabível a execução fiscal, que deve e merece ser aprimorada. Na segunda é legítima a atuação do Direito Penal.
Mas, como dito, esse não é o entendimento da maioria dos ministros do STF até o momento. A corte, se não mudar de posição, legitimará a incidência da pena sobre os inadimplentes de ICMS próprio, mesmo que declarada, reconhecida e registrada a dívida.
Isto não significa que tais comerciantes poderão ser automaticamente denunciados pelo delito contra a ordem tributária. Em primeiro lugar, porque um giro deste da jurisprudência, tornando crime o que antes não era, não deve retroagir. Em homenagem a segurança jurídica, o STF deveria modular sua decisão a fim de salvaguardar aqueles que agiram em um contexto jurisprudencial diferente.
Segundo porque enquanto presunções se aplicam no Direito Tributário, não são cabíveis no processo penal. Será necessário que se demonstre, em cada caso concreto, a decomposição do preço de cada produto ou serviço em suas componentes de custos operacionais, custos tributários, custos trabalhistas, lucro etc. Mais do que isso, deve ser comprovada que os custos tributários foram embutidos integralmente no preço naquela específica operação de venda ou de prestação de serviço, sem abatimentos, e que o consumidor efetivamente pagou o custo tributário antes da data prevista para o pagamento do tributo.
Os obstáculos, quase intransponíveis, para a realização desse cálculo são conhecidos dos tributaristas, mas, ademais, no processo penal, há que se fazer prova de cada um desses elementos. Certamente, a não cumulatividade do ICMS agregará bastante complexidade à pretensão de comprovar a alegada “apropriação” dos valores devidos aos Fiscos estaduais: sim, porque nem tudo o que o contribuinte de ICMS “recebe” do consumidor tem de ser “entregue” ao Fisco.
Mais do que isso, será necessário demonstrar o dolo de apropriação. Mais do que não pagar, o agente deve ter a intenção de tornar sua a coisa alheia, de dispor dela de maneira definitiva, situação dificilmente compatível com o ato de declarar e registrar a dívida.
Como se vê, sem prejuízo de a corte mudar seu rumo e retornar a legalidade na retomada do julgamento, muito haverá de ser discutido nos casos concretos até que se alcance a segurança jurídica e entendimentos uniformes.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
Heloisa Estellita é advogada, professora da FGV Direito SP, doutora em Direito Penal pela USP e pós-doutoranda nas Faculdades de Direito da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e de Augsburg, com financiamento da Fundação Alexander von Humboldt e Capes.
Revista Consultor Jurídico
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Fonte: Jornal Contábil
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