Com a edição da Lei n° 12.846 em 2013, também conhecida como a “Lei Anticorrupção”, o relacionamento das empresas com a administração pública sofreu mudanças profundas e o mundo corporativo brasileiro precisou se adaptar, abolindo práticas até então questionáveis, mas rotineiras no trato com agentes públicos.

A responsabilização objetiva das pessoas jurídicas nas esferas administrativa e civil por atos lesivos à administração pública provocou uma reflexão sobre comportamentos e a necessidade da adoção de novas medidas com o propósito de se adequar à nova lei e, sobretudo, à nova realidade. A aplicação de mecanismos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades como uma das atenuantes na aplicação de sanções às pessoas jurídicas teve um grande impacto na organização de empresas e negócios.

Alguns empresários mais afoitos foram imediatamente recorrer a modelos em legislações e jurisdições estrangeiras, não se atentando para diferenças legais e conceituais. Se, por um lado, o FCPA norte-americano e o Bribery Act inglês são importantes referências, por outro lado, refletem uma cultura e um ambiente corporativo ainda distantes da realidade brasileira. A mera reprodução de programas de compliance amparados por aqueles ordenamentos não é – nem de longe – a maneira mais eficaz de se solucionar o problema e, assim, se considerar em dia com as exigências da Lei Anticorrupção.

A dita tropicalização das normas e ferramentas de compliance estrangeiras é fundamental para o sucesso no desenvolvimento e aplicação de um programa de integridade tal como exigido pela Lei Anticorrupção. Embora a existência de procedimentos internos de compliance seja indispensável para se obter o benefício da redução da sanção, não se pode admitir que a adoção de qualquer regra ou ferramenta seja o bastante para alcançar o benefício então concedido pela Lei Anticorrupção.

A necessidade da aplicação “efetiva” de códigos de ética e de conduta no âmbito das pessoas jurídicas, tal como previsto no art. 7°, inc. VIII, da Lei Anticorrupção, era um importante indicador da atitude esperada daqueles que pretendessem fazer uso da atenuante ou mesmo transparecer ao mercado a sua intenção de coibir práticas reprováveis e ilícitas. Ocorre que a simples compilação de um punhado de regras num código não é suficiente: não basta existir a regra, ela tem de ser efetiva.

Mas como avaliar a efetividade dos códigos de ética e conduta? Como traduzir esse conceito de efetividade para o universo empresarial? A redação do dispositivo contido na Lei Anticorrupção possibilitava múltiplas interpretações, resultando em insegurança e controvérsia sobre as pretensões do legislador.

A regulamentação da Lei Anticorrupção por meio do Decreto n° 8.420/2015 trouxe um pouco mais de clareza sobre o alcance e a extensão da atenuante das sanções decorrentes da prática de atos lesivos à administração pública.

O capítulo IV do Decreto n° 8.420/2015 é inteiramente dedicado a esclarecer os verdadeiros propósitos de um programa de compliance – aqui entre nós denominado “programa de integridade” – cuja validade e eficácia sejam inquestionáveis pelo julgador caso tenha a oportunidade ou mesmo o dever de avaliá-lo.

O programa de integridade deve ter um objetivo claro, qual seja, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos que sejam ou possam ser praticados contra a administração pública. Em que pese a necessidade de informar as condutas admitidas e aquelas impróprias no ambiente de trabalho e na relação com entes públicos, é preciso ir além, municiando a alta administração da empresa com elementos que sejam úteis à apuração e repressão de atos lesivos ao interesse público.

É natural que empresas aproveitem essa circunstância para incluir permissões e proibições de naturezas diversas que não envolvam necessariamente a interação com órgãos e agentes públicos, mais relacionadas com questões de ética empresarial, comportamento humano e respeito às diferenças, entre outros temas. Contudo, não se deve perder o foco e esvaziar umas das principais missões do programa de integridade.

Uma vez esclarecido o objetivo primordial desse programa, há que se ter a certeza de que ele não será e nem deve ser eternamente estático. Da mesma forma que as relações são dinâmicas, é de se esperar que o programa de integridade acompanhe a evolução ou, conforme o caso, o retrocesso dos comportamentos no mundo corporativo e nos vínculos estabelecidos com a administração pública.

A efetividade do programa de integridade também se traduz pela sua adaptação e evolução de forma a endereçar novos padrões de usos e costumes. É preciso admitir que aqueles que tenham interesse em estabelecer relações delituosas com a administração pública sempre buscarão caminhos alternativos e possíveis brechas nas regras então vigentes. A missão do compliance jamais está cumprida, ela se renova a todo instante.

O compromisso com a lisura e efetividade do programa de integridade é permanente e por esse motivo cabe aos seus desenvolvedores e aplicadores monitorar constantemente a aderência e eficácia das regras, políticas e ferramentas que componham o programa de integridade de cada empresa. O aprimoramento é essencial para a sobrevivência do programa, algo que requer a atenção cuidadosa dos seus operadores.

Além da atualização, a efetividade também está apoiada na estruturação e aplicação. Nos termos do parágrafo único do art. 41 do Decreto n° 8.420/2015, “o programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado”.

E como assegurar que o programa de integridade esteja devidamente estruturado? No que consistiria essa estruturação nos termos da lei?

Ao regular a Lei Anticorrupção, o Decreto n° 8.420/2015 contribuiu com diversos parâmetros para avaliação dos programas de integridade de cada empresa. Esses parâmetros revelam certas orientações a serem obedecidas por aqueles que pretendam estruturar o programa de integridade de forma a torná-lo robusto, eficiente e, consequentemente, efetivo.

Dentre os parâmetros apresentados, merece destaque o comprometimento da alta administração da pessoa jurídica, evidenciado por meio do seu apoio inequívoco ao programa de integridade. Os administradores devem dar o exemplo, legitimando as medidas então tomadas pela instância interna responsável pela aplicação do programa e fiscalização do seu cumprimento.

A edição de normas, códigos e manuais internos não é garantia por si só de efetividade. A designação de responsáveis, seja representado por um único profissional ou por um comitê ou diretoria de compliance, é absolutamente necessária para tornar realidade um punhado de regras sobre assuntos variados relativos à ética corporativa e ao relacionamento com entes públicos e privados. O profissional ou grupo encarregado de zelar pela aplicação e monitoramento do programa de integridade deve ter uma atuação independente com autoridade para tomar decisões que, inclusive, podem eventualmente ser drásticas ou impopulares, e até mesmo contraria a alta administração da empresa.

A organização de uma estrutura própria para cuidar do compliance é também um requisito imperativo para revelar um programa de integridade estruturado. Caso não seja possível destacar profissionais para o desempenho dessas atividades, é recomendável recorrer a consultores externos, mas em hipótese alguma admitir que o programa de integridade seja mantido à deriva, sem um direcionamento, sem um responsável por prestar esclarecimentos, aplicar sanções e medidas disciplinares e colocar em práticas os princípios, as políticas, os valores e ferramentas desenvolvidos pela empresa para regular as questões atinentes ao compliance.

Outro equívoco frequente é a adoção de regras que não têm qualquer correlação com a realidade da empresa e o ambiente de negócios no qual a mesma está inserida ou pretende se colocar. Previamente à elaboração de códigos, manuais, questionários e qualquer outra ferramenta de compliance, que venha a compor o programa de integridade, é preciso conhecer e mapear os riscos inerentes à atividade específica da empresa, identificando as áreas mais sensíveis e expostas, os potenciais conflitos e o modus operandi da atividade empresarial.

A estruturação do programa de integridade tem como pressuposto o desenvolvimento de ferramentas que estejam alinhadas com o ramo e a forma de atuação da empresa. Em organizações mais horizontais nas quais a estrutura de comando e condução de negócios é menos complexa, não se pode criar mecanismos que, em lugar de proteger, sirvam para restringir ou mesmo impedir a realização das atividades sociais. A estruturação do programa de integridade exige a compreensão das reais necessidades da empresa considerando os seus processos de tomada de decisão e o seu posicionamento no mercado.

Estruturas complexas de governança em empresas de pequeno e médio porte são altamente prejudiciais e pouco efetivas. A inclusão de etapas diversas nos processos de seleção e contratação de fornecedores retira o caráter dinâmico das operações, comprometendo negócios e resultados. A falta de alinhamento entre gestores quanto à imposição de exigências que sejam factíveis com o perfil dos funcionários e colaboradores é absolutamente mortal.

A pressa em se adequar às exigências da legislação anticorrupção deve ser contida por uma avaliação criteriosa dos riscos. A compreensão desses riscos será determinante para o desenvolvimento de ferramentas eficazes. Essa avaliação pode ser feita por meio de entrevistas, questionários e dinâmicas de grupo e representa um ponto de partida certeiro.

Uma vez alcançado um programa de integridade estruturado e atualizado, resta indagar sobre sua aplicação, último dos requisitos para se atingir a efetividade.

De que forma assegurar a aplicação do programa de integridade? Como demonstrá-la para julgadores e o público em geral?

O anúncio do lançamento do programa de integridade não representa o encerramento das atividades de compliance, muito pelo contrário, significa o marco inicial de várias iniciativas necessárias ao seu cumprimento.

É preciso que todos os destinatários e usuários do programa de integridade tenham conhecimento de suas regras e ferramentas, apreendendo a maneira correta de utilizá-las. A realização de treinamentos é essencial ao bom desempenho do programa e ao alcance das metas que se pretende atingir.

Os treinamentos devem envolver não apenas questões teóricas, mas também situações práticas comuns à rotina do público alvo. A divisão em turmas, observando os diferentes departamentos e níveis de hierarquia e comando, é algo desejável para que o treinamento seja direcionado. Se determinado departamento não tem qualquer interação com agentes públicos não há que se alongar no assunto, ao passo que se esse mesmo departamento centraliza compras de bens e serviços, o enfoque há de ser outro.

Recomenda-se que não apenas a adesão ao programa seja devidamente documentada por todos os integrantes da empresa, mas também o comparecimento e conclusão dos treinamentos. A participação no treinamento deve ser indispensável para cada novo funcionário e condição para o início de suas atividades na empresa, ou seja, uma etapa importante da sua ambientação. Não deve haver distinção, uma vez que o programa deve ser aplicável a todos os funcionários e administradores, independentemente do cargo que ocupam.

Os treinamentos devem ser periódicos, não apenas para manter os funcionários atualizados das mudanças no programa de integridade, mas também para lembrá-los das regras existentes, especialmente para aqueles com pouca familiaridade ou exposição esporádica aos assuntos que envolvam práticas anticorrupção e de ética empresarial.

Em paralelo ao treinamento, é de se esperar que o profissional ou departamento responsável por zelar pelo cumprimento do programa de integridade realize análises e verificações de tempos em tempos da pertinência das regras e ferramentas disponíveis, além do monitoramento contínuo dos riscos.

A implementação de procedimentos internos de controle para a elaboração de documentos – financeiros ou não – que sejam confiáveis, completos e condizentes com a realidade da empresa é outra medida necessária para garantir a aplicação do programa. Uma contabilidade precisa e com registros fiéis é importante para coibir desvios e a ocultação de práticas reprovadas pelo programa de integridade.

A promoção de debates e grupos de discussão para tratar de fragilidades e riscos que possam ser evitados e mitigados, assim como a implantação de canais de denúncia de irregularidades cujo acesso possa se dar inclusive de forma anônima e que seja objeto de criteriosa apuração dos fatos, são outras formas de se alcançar os efeitos planejados para o programa.

A efetiva aplicação de medidas disciplinares a infrações comprovadas, de forma de consistente e equitativa, também é essencial para o bom desempenho do programa de integridade. A existência de regras no papel, que na prática não são aplicadas, pode levar à crença de impunidade e eventualmente estimular retaliação aos denunciantes. Da mesma forma, a aplicação equivocada das sanções previstas, punindo-se com rigor algumas condutas e deixando de lado outras de gravidade equivalente, ou mesmo assegurando tratamento diferenciado a determinadas pessoas, poderá disseminar temor e incertezas entre os destinatários das regras.

Em que pese a escolha do legislador pela terminologia “programa de integridade” em lugar do “programa de conformidade”, tradução literal do termo “compliance”, a intenção e a necessidade de estar em conformidade com leis e regulamentos internos e externos são reveladas em vários aspectos da nossa legislação. A manutenção desse pressuposto é obtida por diversos meios, sobretudo com a efetividade do programa.

Assim como no provérbio do imperador romano Júlio César, não basta que o programa de integridade seja efetivo, tem de parecer efetivo, e essa efetividade deve poder ser demonstrada de diferentes maneiras.

Via Jota.Info

O post Lei Anticorrupção: Como assegurar a efetividade de um programa de integridade? apareceu primeiro em Jornal Contábil.

Fonte: jc