Se você trabalha com contadoria/auditoria, já deve ter ouvido falar em “Noclar”, sigla em inglês para “Non-compliance with Laws and Regulations” (Não Conformidade com Leis e Regulações). Trata-se da norma internacional que obriga o profissional da área contábila comunicar aos órgãos de fiscalização sobre qualquer percepção de irregularidades contábeis em balanços/operações dos clientes.
A orientação, embora originária de outros países, não demorou a ser ecoada também no Brasil. Em uma era em que novas leis são editadas para fortalecer regras de compliance, importar uma norma internacional que não interpreta como quebra de sigilo a comunicação de irregularidades contábeis é passo crucial para trazer mais credibilidade e transparência às relações corporativas.
O curioso é que essa orientação de ética contábil já está presente há pelo menos 20 anos em nossa legislação (Lei n.º 9.613/1998), mas, mesmo assim, foi somente a partir de 2017 (com a edição da Resolução CFC n.º 1.530/2017) que a indicação se tornou obrigação. Você confere todos os detalhes sobre isso agora!
Desde quando essa obrigação existe?
A obrigação dos contadores em reportar irregularidades contábeis não é nova, uma vez que tal determinação já tinha sido inserida na Lei n.º 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro). O artigo 9º é claro ao colocar o profissional de contabilidade no rol de agentes submetidos a essa lei:
Art. 9º Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as seguintes pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:
(…) XIV – prestação (PF ou PJ), mesmo que eventualmente, de serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações:
a) (…) de participações societárias de qualquer natureza;
b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; (…)
e) financeiras, societárias ou imobiliárias;
Mais adiante, no artigo 11, o normativo indica ainda quais são as responsabilidades sob a incumbência dos profissionais de gestão e contadoria — entre elas, dar atenção especial a todas as operações com indício de crime de lavagem de dinheiro (ou irregularidades contábeis, de forma geral), devendo o profissional
“comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas” (inciso II do artigo 11).
A lei esclarece também que a comunicação de boa-fé não acarreta responsabilizações civis ou administrativas (artigo 12).
Se essa determinação já existia há décadas, por que só nos últimos anos se tornou tão falada (e temida)?
Assim como ocorre com muitas leis nacionais, alguns dispositivos da Lei de Lavagem de Dinheiro careciam ainda de resoluções auxiliares, que regulamentassem ou descrevessem com detalhes procedimentos que eram citados apenas superficialmente na lei de 1998. Por exemplo, a obrigação é comunicar ao Coaf. Mas como? Em pessoa? Por e-mail? Como deve ser feito esse relato?
Coube então à Resolução nº 1.530/2017, do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), dar instrumentalidade às determinações de reporte por parte dos profissionais contábeis ao Coaf (em caso de irregularidades contábeis). Além disso, também trata de políticas de prevenção, manutenção de cadastro dos clientes, necessidade de manter registro dos serviços prestados, entre outras questões.
Segundo as legislações citadas, o que deve ser denunciado? Como, onde e quando fazer a denúncia?
O artigo 5º da Resolução nº 1.530/2017 elenca as seguintes situações que merecem atenção extra por parte dos profissionais de contabilidade:
operações aparentemente fora do usual, considerando as atividades e o ramo do negócio da empresa;
operações cuja fundamentação econômica ou legal não esteja clara;
operações incompatíveis com o patrimônio ou a capacidade econômico-financeira do cliente;
operações cujo beneficiário final não seja possível precisar;
operações envolvendo pessoa jurídica constituída em regiões consideradas de alto risco no que tange à lavagem de dinheiro ou terrorismo;
operações que, sem justificativa aparente, sejam organizadas de forma mais complexa (ou mais onerosa), no intuito de dificultar o rastreamento de recursos ou a identificação do real motivo da transação;
operações que aparentem ser fictícias, super ou subfaturadas;
operações que tentem adulterar ou maquiar seu real motivo (incluindo fracionamento de valores).
Uma vez que essas transações sejam detectadas, cabe ao contador/escritório contábil comunicar ao Coaf sobre sua existência. Isso deve ser feito por meio do site do Conselho, no menu “SisCoaf”, fazendo o respectivo login por CPF e senha.
Caso seja sua primeira entrada no sistema, basta clicar em “Primeiro Acesso” e seguir o passo a passo para cadastro:
clicar em “pessoa física” (se contador);
preencher seu CPF e e-mail para validação inicial;
após o recebimento do link de confirmação, basta abri-lo para preencher as demais informações de cadastro.
O artigo 6º da Resolução 1.530/2017 do CFC exige que a comunicação contenha, necessariamente, o detalhamento das transações suspeitas, o relato dos fatos e a qualificação dos envolvidos, destacando, inclusive, eventual existência de pessoas públicas (“pessoas expostas politicamente”).
Além disso, há situações que devem ser comunicadas ao Coaf independentemente de suspeita de irregularidades contábeis. São elas:
compra de ativos e/ou pagamentos a terceiros em dinheiro vivo, em valor superior a R$ 50 mil por operação;
constituição de empresa e/ou aumento de capital social com integralização, também em dinheiro vivo, com valores superiores a R$ 100 mil, caso essa operação tenha ocorrido em um único mês-calendário.
Vale destacar que as informações decorrentes de serviços de assessoria (em que se contrata um profissional ou organização contábil para fazer análise de riscos) não necessitam de comunicação ao Coaf (artigo 8º).
Outro detalhe importante é que todas as comunicações referentes aos fatos acima elencados devem ser feitas no prazo de 24 horas a partir do momento em que o responsável concluir a suspeita de ilícito, abstendo-se, evidentemente, de dar ciência aos suspeitos (artigo 9º).
O que pode acontecer com o escritório contábil caso a denúncia não seja feita?
Você vai encontrar as sanções por descumprimento das determinações acima mencionadas no artigo 12 da Lei de Lavagem de Dinheiro. Lá, há uma lista grande de punições previstas para quem deixa de comunicar as irregularidades contábeis dos clientes. Portanto, é preciso ficar atento aos riscos inerentes aos contratos contábeis.
As sanções previstas pela legislação são escalonadas, indo desde multas (que podem chegar a R$ 20 milhões) até a inabilitação temporária (por até 10 anos) para cargo de administrador de escritório contábil. Em casos extremos, a lei prevê também a cassação definitiva ou suspensão do exercício da profissão. Não vale a pena se omitir.
Caso não tenha sido detectada nenhuma atividade suspeita durante o ano, o contador/escritório contábil deve fazer a chamada “comunicação negativa”, por meio do mesmo site mencionado acima, até 31/1 do ano seguinte.
Essa obrigatoriedade de reportar irregularidades contábeis pode abalar a relação entre escritório contábil e cliente?
Não se trata de delação, mas de ação dentro do escopo legal. Em um momento no qual as organizações brasileiras precisam fortalecer seus mecanismos de controle e governança corporativa, a medida não indica nenhuma perturbação na relação das empresas com seus contadores.
Na verdade, o dever de relatar ilícitos contábeis por parte de contadores/auditores traz mais transparência às operações das empresas nacionais — o que aumenta sua competitividade no mercado internacional, sobretudo na captação de recursos externos. Além disso, esse compromisso ético fortalece a confiança no profissional contábil, melhorando ainda mais sua reputação na sociedade.
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