Imagine a cena: um consumidor brasileiro percorrendo os corredores de um supermercado, a lista de compras na mão. Chocolates, biscoitos, um produto de higiene pessoal familiar – itens corriqueiros, presentes em quase todos os lares. Os preços sobem e descem, promoções piscam nas gôndolas, e por vezes, pequenas alterações nos produtos passam despercebidas. Por trás dessa dinâmica aparentemente simples, pode haver uma força oculta moldando o que se compra e por quanto: a engenharia tributária. Trata-se de uma estratégia legal, dentro do complexo sistema tributário brasileiro, que permite às empresas reduzir a carga de impostos sobre seus produtos. Este artigo tem como objetivo desvendar cinco exemplos concretos de como a engenharia tributária tem sido aplicada a produtos de consumo no Brasil, muitas vezes sem que o consumidor final se dê conta das implicações fiscais por trás de pequenas mudanças.
A engenharia tributária, em sua essência, consiste na utilização de mecanismos legais para minimizar o pagamento de tributos sobre bens e serviços. Na complexa legislação tributária brasileira, repleta de impostos como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS),entre outros, empresas buscam brechas e alternativas para otimizar sua carga fiscal. Uma das formas mais comuns de engenharia tributária em produtos de consumo envolve a alteração da classificação fiscal das mercadorias. O sistema tributário brasileiro possui uma vasta gama de categorias de produtos, cada uma com suas próprias alíquotas e regras de tributação. Ao modificar sutilmente um produto, seja em sua composição, embalagem ou até mesmo na sua descrição, as empresas podem enquadrá-lo em uma categoria fiscal diferente, beneficiando-se de impostos menores ou até mesmo de isenções. A complexidade do sistema, com seus mais de 15 mil códigos na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), facilita essa busca por classificações mais vantajosas. Essa otimização tributária é uma prática comum no planejamento tributário das empresas , visando a redução de custos e o aumento da competitividade.
Cinco Casos de Engenharia Tributária no Seu Carrinho de Compras
Para ilustrar como a engenharia tributária opera no dia a dia do consumidor brasileiro, analisaremos cinco casos de produtos populares que passaram por mudanças estratégicas para reduzir a carga tributária, muitas vezes sem que o público percebesse o motivo subjacente.
Caso 1: O Doce que Virou Biscoito (Sonho de Valsa)
Um exemplo emblemático de engenharia tributária é o caso do chocolate Sonho de Valsa. Em 2019, a Lacta alterou a classificação fiscal do produto de “bombom” para “wafer”, o que resultou na eliminação da alíquota de 3,25% de IPI. Essa mudança não ocorreu por acaso. A alteração da embalagem, que passou de um formato com as pontas torcidas para um com as extremidades seladas , foi o fator determinante para essa reclassificação. Do ponto de vista do consumidor, o produto permaneceu praticamente o mesmo em sabor e aparência geral. No entanto, a mudança na embalagem permitiu que o Sonho de Valsa fosse enquadrado na categoria de “wafer”, que possui tributação de IPI nula. É provável que o preço final para o consumidor não tenha sofrido uma redução significativa, com a economia tributária sendo internalizada pela empresa. A sutileza da alteração na embalagem e a falta de conhecimento do consumidor sobre as classificações fiscais fizeram com que essa engenharia tributária passasse despercebida pela maioria.
Caso 2: Seguindo a Onda do Wafer (Serenata de Amor)
Inspirada pela estratégia da concorrente, a Garoto também implementou uma engenharia tributária semelhante com seu famoso chocolate Serenata de Amor em 2021. O produto, tradicionalmente um “bombom”, também teve sua classificação fiscal alterada para “wafer” através de uma modificação na embalagem. Essa manobra também visou a eliminação do IPI, que para bombons poderia chegar a 5%. Assim como no caso do Sonho de Valsa, a mudança para o consumidor foi quase imperceptível, mantendo o sabor e a identidade visual do produto. Contudo, a reclassificação permitiu à Garoto uma significativa redução na carga tributária. Curiosamente, há relatos de que, mesmo com a isenção do IPI, o preço do Serenata de Amor não diminuiu para o consumidor e, em alguns casos, até aumentou , indicando que a economia tributária não foi repassada ao público. A familiaridade do produto e a falta de atenção dos consumidores às minúcias fiscais garantiram que essa estratégia de engenharia tributária não gerasse grande alarde.
Caso 3: A Sobremesa Gelada (McDonald’s)
Em 2022, a rede de fast-food McDonald’s adotou uma estratégia de engenharia tributária ao reclassificar seu tradicional sorvete como “massa gelada”. Essa mudança de nomenclatura permitiu à empresa eliminar a alíquota de 3,25% de IPI que incidia sobre a categoria de sorvetes. A justificativa para a reclassificação reside no fato de que a “massa gelada” à base de leite pode ser enquadrada em uma categoria fiscal com menor tributação, por ser considerada um item mais básico de consumo. Para o consumidor, a alteração foi sutil, restringindo-se principalmente ao nome do produto no cardápio. O sabor e a apresentação permaneceram semelhantes, de modo que muitos clientes sequer notaram a mudança. A estratégia da McDonald’s demonstra como a engenharia tributária pode envolver até mesmo a alteração da descrição de um produto para se beneficiar de uma tributação mais favorável, sem alterar substancialmente a experiência do consumidor. A reclassificação de um “produto de luxo” como “sobremesa láctea gelada” ilustra a busca por alíquotas menores.
Caso 4: O Desodorante Multiuso (Leite de Rosas)
Um caso mais antigo, de 2012, envolve o tradicional Leite de Rosas. A Cia. Brasileira de Produtos de Higiene e Toucador buscou classificar o produto como desodorante, em vez de loção embelezadora, com o objetivo de reduzir a alíquota de IPI de 22% para 7%. A empresa argumentou junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que a função do produto se enquadrava na categoria de desodorante. Após uma disputa que chegou ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), o Leite de Rosas foi considerado desodorante, resultando na alíquota de IPI menor. Embora essa mudança tenha representado uma significativa redução potencial no custo do produto para a empresa, não há clareza se essa economia foi totalmente repassada ao consumidor. A principal alteração para o público foi a manutenção de um produto familiar, sem o conhecimento da batalha tributária travada nos bastidores. A engenharia tributária, neste caso, dependeu de uma interpretação da funcionalidade do produto para obter um benefício fiscal.
Caso 5: A Barra de Cereal (Neston)
Em 2017, a Nestlé tentou classificar suas barras de cereal Neston como “preparações alimentícias obtidas a partir de flocos de cereais” para eliminar a incidência de IPI. A empresa argumentou que a composição e o processo de fabricação do produto se enquadravam nessa categoria, que possuía alíquota zero de IPI. No entanto, a Receita Federal não aceitou essa classificação, e o caso foi levado ao CARF. O CARF decidiu manter a classificação original do produto como “outros produtos de confeitaria, sem cacau”, com uma alíquota de IPI de 5%. Embora a tentativa de engenharia tributária da Nestlé não tenha sido totalmente bem-sucedida, ela ilustra o esforço das empresas em buscar classificações fiscais mais vantajosas. O consumidor provavelmente permaneceu alheio a essa disputa tributária, continuando a comprar a barra de cereal sem saber da tentativa de redução de impostos.
Os cinco casos analisados demonstram que a engenharia tributária é uma realidade no mercado brasileiro, com empresas buscando ativamente formas de reduzir seus encargos fiscais sobre produtos de consumo. Seja através de alterações na embalagem, na nomenclatura ou na argumentação sobre a funcionalidade do produto, as empresas exploram as complexidades do sistema tributário para otimizar seus resultados financeiros.
Por Lucas de Sá Pereira, contador https://contadorlucaspereira.shop/, e colunista do Jornal Contábil e criador do Instagram @contadorlucaspereira
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