Herança digital: Entre o conceito e a prática

A “herança digital” está entre os temas mais debatidos pela civilística nacional na contemporaneidade, em especial após a pandemia de covid-19, que afetou a sociedade nas mais diversas esferas e desencadeou um aumento da utilização das plataformas e ferramentas on-line. O Direito, que sofre direta influência das transformações sociais e históricas, apreendeu muitas das questões que guardam relação com a sucessão digital e que, ao fim e ao cabo, trazem em si dois temas que ouvimos falar com frequência nos últimos dois anos: a morte e a internet.

Não obstante a importância da matéria, não há no Direito Brasileiro previsão legal que verse sobre a transmissibilidade do “ativo digital” após a morte de seu titular ou, ainda, sobre “o tratamento das informações constantes na rede após a morte do usuário”.

E a referida transmissão do denominado acervo digital – que é composto por redes sociais, arquivos em nuvem, plataformas de streaming, canais no YouTubesites, e-mails, etc – perpassa não só pela mensuração e exploração econômica do conteúdo digital deixado pelo falecido, mas também pelas situações jurídicas existenciais decorrentes da sucessão.

Com efeito, “a privacidade e a intimidade da pessoa devem ser protegidas mesmo após a sua morte. Pense-se, por exemplo, em mensagens íntimas trocadas entre usuários titular de contas em rede social. Nesse caso, não se está diante de bem que integra a herança que, como tal, é transferida com a morte do de cujus (saisine)”.

Recentemente, no âmbito do Juizado Especial Cível da Comarca de Santos (SP), foi concedido ao pai de um jovem falecido o direito de acessar os arquivos salvos na “nuvem” do celular pertencente ao de cujus. Nos termos da sentença, proferida nos autos n. 1020052-31.2021.8.26.0562 de Tutela Antecipada Antecedente e que será publicada em 21.01.2022:

As circunstâncias que envolvem o caso estão devidamente comprovadas […], restando claro o interesse de seus familiares no acesso aos dados armazenados por ele, notadamente fotos e outros arquivos de valor sentimental, como últimas lembranças que possuem dele. Também se extrai do referido documento que o requerente não deixou filhos, de modo que, na ordem sucessória do artigo 1.829 do Código Civil, seus genitores são seus legítimos herdeiros.

A decisão, apesar de levar em conta os anseios dos familiares em luto, não se debruçou sobre a vontade (não) manifestada do de cujus e sobre os direitos da personalidade do falecido (em especial sobre a sua privacidade e intimidade), que, via de regra, pertencem ao seu titular e não são transmissíveis aos herdeiros. Além disso, deixou-se de considerar que, dentre as fotos e vídeos constantes na nuvem, é possível que se encontrem arquivos enviados por terceiros ao de cujus com a expectativa de que o acesso seria apenas de quem os recebeu.Neste aspecto, a vontade dos usuários acerca do “destino” do acervo digital pode ser manifestada através de testamento ou codicilo, ou, ainda, perante as próprias plataformas digitais. A Apple, por exemplo, disponibiliza o recurso denominado “legado digital”, através do qual permite designar uma ou mais pessoas para serem “herdeiros digitais” com acesso à conta do iCloud (nuvem) em caso de falecimento do titular. Do mesmo modo, o Facebook permite que seus usuários escolham determinada pessoa para o gerenciamento da conta em caso de morte.

Em que pese as ferramentas disponíveis, são raros os casos daqueles que antecipadamente deliberam sobre a transmissibilidade do seu acervo digital após a sua morte.

A matéria aqui debatida não tem resolução ou resposta simples e comporta discussões que perpassam por temas como: proteção de memória da pessoa falecida, exploração econômica do acervo digital, sucessão de criptomoedas, dentre outros. As questões que se colocam perante os operadores do Direito são muitas e demandarão um repensar sobre o Direito Sucessório e sobre o Direito Digital como um todo.

Por Mariana Barsaglia Pimentel, Sócia-diretora e Direito da Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório; Doutoranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná; Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. E por José Miguel Garcia Medina, Doutor em direito das relações sociais pela PUCSP, é sócio fundador do Medina Guimaarães Advogados.

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Fonte: Jornal Contábil
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