Com a eleição do Papa Leão XIV, a Igreja Católica vive mais um marco histórico. A imprensa mundial foca nos posicionamentos teológicos, nas diretrizes sociais e nos simbolismos do novo pontífice. No entanto, há um campo tão desafiador quanto a missão espiritual: a gestão contábil, patrimonial e financeira da Santa Sé — e é sobre ele que precisamos lançar luz.
Liderar espiritualmente 1,3 bilhão de fiéis espalhados em todos os continentes já seria missão suficiente. Mas o novo papa também herda uma das estruturas organizacionais mais complexas e centenárias do mundo. O Vaticano não é apenas o menor Estado do planeta em extensão territorial, é também um centro de poder com investimentos financeiros, ativos imobiliários e operações globais em instituições educacionais, de saúde e beneficentes. Governar essa estrutura exige, além de fé, muita ciência contábil.
1. A Igreja como um “conglomerado”: múltiplos centros de custo e receitas diversificadas
A Igreja Católica está presente em quase todos os países do mundo, com milhares de dioceses, paróquias, hospitais, universidades, escolas e organizações sociais. Em termos contábeis, trata-se de um modelo altamente descentralizado. Embora o Vaticano exerça autoridade espiritual sobre a Igreja global, ele não consolida automaticamente todos os seus ativos e resultados financeiros.
Cada diocese é, na prática, uma entidade autônoma — o que dificulta a padronização de práticas contábeis, o acompanhamento dos recursos e o combate a fraudes. O desafio do Papa Leão XIV será justamente estabelecer diretrizes contábeis globais, com critérios uniformes, auditorias frequentes e exigência de transparência nas prestações de contas locais, sob risco de perda de credibilidade.
Além disso, as fontes de receita são extremamente variadas: vão desde doações e dízimos até aplicações financeiras, arrendamentos de imóveis e até direitos autorais. Gerir essas fontes exige uma contabilidade robusta, integrada e profissionalizada — algo que ainda está longe de ser a realidade em muitas regiões.
2. As reformas financeiras de Bento XVI e Francisco: avanços e entraves
Nos últimos anos, a Igreja passou por reformas estruturais visando maior transparência e controle financeiro. Ainda em 2010, sob o pontificado de Bento XVI, foi criada a Autoridade de Informação Financeira (AIF), com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro dentro da estrutura do Vaticano.
Já com o Papa Francisco, vieram medidas mais incisivas: a criação da Secretaria para a Economia, sob comando inicial do Cardeal George Pell, a implementação de auditorias independentes e a publicação periódica de demonstrações financeiras. Em 2021, por exemplo, o Vaticano divulgou um relatório patrimonial que mostrava uma queda de receitas, aumento de gastos e a necessidade urgente de reorganização dos investimentos.
Contudo, apesar dos avanços, a resistência interna foi forte. Algumas ordens religiosas e cardeais influentes resistiram à fiscalização, dificultando a aplicação plena das reformas. O novo papa enfrentará a difícil tarefa de continuar esse processo de forma mais incisiva, combatendo privilégios e quebrando resistências políticas internas — e isso exige não só fé, mas uma gestão com pulso firme e conhecimento técnico.
3. A contabilidade da fé: onde está o dinheiro dos fiéis?
Uma das perguntas que mais incomodam os fiéis é: “Para onde vai o dinheiro das doações?” O mundo contemporâneo exige prestação de contas clara e acessível — algo que, durante séculos, a Igreja evitou. Em muitos países, inclusive o Brasil, a Igreja Católica é isenta de tributos como IRPJ e IPTU, e não está obrigada a publicar balanços consolidados — o que torna a fiscalização limitada.
Esse cenário precisa mudar. O Papa Leão XIV tem a oportunidade de estabelecer um novo paradigma: contabilidade pública e acessível, relatórios anuais por região e a adoção voluntária de normas como as IFRS ou IPSAS. Não se trata apenas de agradar aos órgãos fiscalizadores, mas de reforçar a confiança do povo. Afinal, fé sem transparência pode se tornar abuso.
Além disso, iniciativas como o “Óbolo de São Pedro” — tradicional arrecadação global para as obras do Vaticano — precisam de relatórios específicos e demonstrações de impacto, evitando escândalos como o uso desviado desses fundos para operações imobiliárias duvidosas em Londres, que vieram à tona em 2020.
4. A crise da sustentabilidade: quando a fé já não paga as contas
A realidade é dura: o modelo tradicional de financiamento da Igreja está sob risco. A diminuição do número de fiéis na Europa e na América do Norte, a queda nas doações presenciais e o envelhecimento do clero tornam o modelo atual insustentável em médio prazo. A digitalização dos serviços religiosos — como missas online — até gerou uma aproximação com os jovens, mas não conseguiu converter audiência em recursos.
Aqui, o novo papa terá que pensar como um gestor contemporâneo: repensar o modelo de arrecadação, estimular o empreendedorismo social nas comunidades religiosas e, principalmente, profissionalizar a gestão patrimonial da Igreja. Ativos como imóveis ociosos, terras e até obras de arte precisam ser reavaliados dentro de uma lógica de governança, e não apenas como relíquias históricas.
Por que não transformar esses ativos em fundos que financiem projetos sociais? Por que não adotar modelos de investimento com impacto, alinhando fé e ESG (Environmental, Social and Governance)? A contabilidade tem as ferramentas — o que falta, muitas vezes, é vontade política.
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5. Uma nova cultura contábil: formar padres e gestores preparados
Por fim, não há como garantir boa gestão sem formação técnica adequada. A maioria dos padres, bispos e líderes religiosos não possui formação contábil ou financeira. O resultado disso é a má gestão involuntária, a falta de planejamento orçamentário e, em alguns casos, o endividamento de paróquias.
É urgente que os seminários incorporem disciplinas de gestão financeira, contabilidade e administração eclesial. O Papa Leão XIV pode liderar esse movimento ao incentivar a criação de cursos, certificações e centros de formação voltados para a boa gestão da fé — afinal, como diz a própria Escritura, “a quem muito foi dado, muito será exigido” (Lucas 12:48).
Uma Prestação de Contas com o Céu… e com a Terra
O desafio contábil do Papa Leão XIV é, na verdade, uma síntese dos tempos: vivemos a era da transparência, da cobrança por ética, do combate à corrupção e da exigência por dados claros. Se até mesmo os líderes da fé não forem capazes de prestar contas com responsabilidade, que esperança restará às demais instituições?
Cabe ao novo papa mostrar que espiritualidade e boa governança podem — e devem — caminhar lado a lado. E que, entre dogmas e planilhas, a contabilidade também é uma forma de servir à verdade.
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O post Os Desafios Contábeis do Papa Leão XIV: Transparência, Fé e Prestação de Contas no Século XXI apareceu primeiro em Jornal Contábil – Independência e compromisso.
Contabilidade em SBC é com a Dinelly. Fonte da matéria: Jornal Contábil