Recentemente, o novo ofício circular do INSS reascendeu a discussão acerca da manutenção ou não do requisito carência para os benefícios concedidos com base nas regras da Reforma da Previdência. Conforme havíamos mencionado em outra oportunidade, a extinção da carência para as aposentadorias programáveis pós-Emenda Constitucional 103/2019 era um tema que o Prev já antecipava uma possível divergência de entendimentos a respeito.
Por meio do ofício, a Autarquia Previdenciária se posicionou expressamente no sentido de que a Emenda não teria interferido na carência disciplinada pela Lei 8.213/91, o que manteria a exigência de 180 contribuições mensais para as aposentadorias programáveis e de 12 contribuições para a aposentadoria por incapacidade permanente previdenciária, classificada como aposentadoria não-programável.
Ocorre que, além de não arrazoar tal decisão, o INSS gera dois problemas. O primeiro é que, uma vez adstrito ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CF/88), a Autarquia Previdenciária, assim como todos os órgãos da Administração Pública direta e indireta, só pode atuar estritamente de acordo com o que está previsto em lei. Assim, no momento em que, mesmo diante da ausência total de estipulação legal, o INSS insiste na aplicação de um requisito extra aos benefícios em questão, a sua atuação passa a estar em desacordo com o referido princípio.
Nesse sentido, verifica-se que, desde a aprovação da Emenda Constitucional 103/2019, não há sequer uma menção no novo texto constitucional ao requisito carência. De fato, a retirada dessa exigência já visava justamente dificultar o acesso às aposentadorias, uma vez que a forma de contagem do tempo de contribuição é diferente da forma de contagem da carência, conforme já referimos em outro blog.
Imagine-se o seguinte caso: um segurado, que laborou de 01/01/2005 a 01/12/2019, possui 180 meses de carência, mas somente 14 anos, 11 meses e 1 dia de tempo de contribuição, razão pela qual ainda precisaria trabalhar por mais 29 dias para atingir o requisito de tempo de serviço para a antiga aposentadoria por idade. Extinguindo-se o requisito da carência, portanto, restaria somente o requisito que demora mais para ser contabilizado.
Por outro lado, a mudança Constitucional de exigir apenas o implemento da idade mínima e 15 anos de tempo de contribuição como requisito para aposentadoria por idade nas regras de transição gerou uma oportunidade para quem trabalhou em condições especiais (insalubridade, periculosidade ou penosidade) antes da reforma. Conforme também já alertamos em nosso Blog, com base na nova disposição constitucional do art. 18 de não exigir carência para aposentadoria por idade e o comando do art. 25, § 2.º autorizando a conversão do tempo trabalhado em condições especiais até a véspera da publicação da reforma, tornou viável o entendimento literal de que após a reforma é possível converter tempo especial em comum também na aposentadoria por idade.
Vejamos o texto da EC 103:
Art. 18. O segurado de que trata o inciso I do § 7º do art. 201 da Constituição Federal filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderá aposentar-se quando preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I – 60 (sessenta) anos de idade, se mulher, e 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem; e
II – 15 (quinze) anos de contribuição, para ambos os sexos.
1º A partir de 1º de janeiro de 2020, a idade de 60 (sessenta) anos da mulher, prevista no inciso I do caput, será acrescida em 6 (seis) meses a cada ano, até atingir 62 (sessenta e dois) anos de idade.
2º O valor da aposentadoria de que trata este artigo será apurado na forma da lei.
Art. 25, § 2º Será reconhecida a conversão de tempo especial em comum, na forma prevista na Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, ao segurado do Regime Geral de Previdência Social que comprovar tempo de efetivo exercício de atividade sujeita a condições especiais que efetivamente prejudiquem a saúde, cumprido até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, vedada a conversão para o tempo cumprido após esta data.
Conforme referido, no art. 18 não há previsão de carência e o próprio artigo constitucional disciplina todos os requisitos necessários para o concessão do benefício, apenas autorizando lei complementar para regulamentar o cálculo do valor do benefício.
No ponto, por mais que queira barrar a possibilidade de acesso antecipado ao benefício de aposentadoria por idade, não cabe ao INSS incluir uma condição para os benefícios de transição e pós-Reforma se o novo texto constitucional que criou benefícios e seus requisitos deixou de fazê-lo. Isso nos leva, em verdade, ao segundo problema de tal entendimento: o INSS acaba por criar um regime jurídico híbrido.
Com efeito, no momento em que a Autarquia insiste na manutenção da carência, mesmo após a entrada em vigência da Emenda Constitucional 103, ela acaba por mesclar um requisito que diz respeito somente aos benefícios concedidos com base na legislação anterior com os novos requisitos previstos a partir da Reforma da Previdência, situação esta já expressamente vetada pelo STF.
Por fim, insta registrar que hipótese totalmente diferente é a dos benefícios por incapacidade. Quanto a estes, a Emenda Constitucional 103/2019 silenciou, isto é, não trouxe novos ou sequer alterou os requisitos já existentes para a sua concessão, razão pela qual, por óbvio, permanecem as regras da legislação anterior.
Veja-se que essa é justamente a razão para que não haja mais carência a partir da Reforma da Previdência para as aposentadorias programáveis. Uma vez advindo um regramento completamente novo em relação ao anterior, devem ser aplicados os requisitos previstos na nova Lei, ainda mais considerando que esta possui força constitucional.
De todo modo, se o INSS mantiver esse entendimento, caberá ao Poder Judiciário decidir a respeito do assunto. Até lá, porém, não se vislumbra nenhuma hipótese em que seja possível afirmar que o requisito carência tenha sido mantido pela Emenda Constitucional, devendo ser consideradas exclusivamente as exigências previstas em Lei.
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Conteúdo original Previdenciarista
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